quarta-feira, 26 de março de 2014

A Travessia do Curumim

Gostei bastante deste artigo escrito pelo velejador Wlademir Juliano Treiss, publicado na edição nº 6, página 6, de maio/junho 2013, do Jornal Almanáutica, que transcrevo na íntegra.

"Quem já pensou em navegar por aí, singrando os mares mundo afora? Um veleiro de cruzeiro com o qual possamos ir longe, com um certo conforto, conhecendo lugares paradisíacos que, normalmente, vemos somente em revistas e na televisão... Pode parecer um sonho difícil de ser alcançado, distante da realidade da grande maioria. Mais precisamente, um veleiro de verdade... deve ser coisa de milionário!
E a coragem que é preciso então? Pra enfrentar ondas gigantes, ventos furiosos... semanas de isolamento... Deve ser o tipo de coisa pra pessoas excepcionais, de coragem extrema e preparo fora do normal...
Mas, minha gente, será que é isso mesmo? Será que não existe uma certa tendência à criação de mitos e heróis quando, na verdade, como sabem aqueles que realmente frequentam o mar, a navegação é atividade de gente brava, mas simples... homens de caráter, gente determinada, mas gente como a gente, homens e mulheres que amam o mar e nada mais?
E quanto ao mito que existe de que para navegar mundo afora num veleiro de cruzeiro é preciso ter muito dinheiro? Certamente existe gente abastada no meio da vela, mas raramente se vê uma pessoa realmente rica (economicamente falando) vagabundeando mundo afora. Os barcos que se encontram mundo afora são, na maioria das vezes, de pessoas da classe média que, por amor ao mar, à navegação à vela e às possibilidades de entrar em contato com povos e culturas distantes acabam jogando tudo pro alto (geralmente com anos de preparação e economias) e partindo em busca do próprio sonho. Provavelmente seja a forma mais econômica de se viajar longas distâncias e por longos períodos.
E o barco que se precisa pra realizar tal proeza!?! Deve custar verdadeira fortuna... E os equipamentos necessários então!?! Radares de última geração, chart-ploters interfaceados com computadores, fac-símile, tablets, geladeiras, dessalinizadores e toda uma parafernália caríssima...
Será mesmo? E como fizeram Vito Dumas, Slocum, Moitessier e tantos outros de épocas em que nada disso existia? Eram todos loucos que atravessaram oceanos e que chegavam nos destinos pré-estabelecidos por pura sorte? Ou será mais uma questão de vontade, determinação e preparação?
Barcos de última geração, com todos os detalhes de requinte e sofisticação são sempre caros, e, muitas vezes, projetados mais para terem boa manobrabilidade dentro da marina do que estabilidade de rota em alto mar. Barcos que têm bom desempenho a motor, mas que são verdadeiros suplícios navegando no contra-vento. Ao invés disso, um bom barco de alto mar pode estar nos fundos de uma marina, num terreno baldio, semi-abandonado dentro de um velho galpão... Quem sabe um pequeno barco de madeira, um antigão de fibra de vidro com aquele casco de espessura generosa... Certamente não deverá custar uma fortuna! E, incrível, pode ser que seja um ótimo barco para longas travessias! Fora de moda hoje em dia, mas, ¿porque não? um barco de quilha longa para uma boa estabilidade de rota, ou com um robusto skeg conferindo segurança e robustez ao leme, quem sabe armado a cuter, o que lhe dará um mastro mais bem estaiado além de uma grande gama de combinações com as velas para melhor enfrentar as diversas situações...
Ademais, falando em parafernália, sistemas complexos são, na maioria das vezes, sensíveis e delicados, consomem a energia armazenada nas baterias... consequentemente será preciso mais combustível, ou mesmo um gerador a bordo, mais placas solares... Tudo contribui para complicar e encarecer.
Bem, certamente estas afirmações são a opinião do autor que vos escreve. Estou certo de que o assunto pode gerar muitas discussões e controvérsias, mas, na minha humilde opinião, a simplicidade a bordo tem grandíssimas vantagens que só vem a contribuir para a economia do próprio bolso e para a redução dos problemas a bordo. Além do mais, ao simplificar as coisas e reduzir os custos, as chances de ir para o mar mais cedo aumentam muito...
É um mito pensar que geladeira a bordo é imprescindível. É falta de conhecimento achar que o piloto automático é o melhor aliado numa longa travessia. Um leme de vento, além conferir mais autonomia e de ser mais seguro como equipamento para manter a rota, também pode ser construído de forma muito simples e robusta, principalmente se o leme do barco for do tipo fixado no espelho de popa... (novamente a simplicidade...)
O que se precisa realmente é de um bom barco e um bom preparo.
E um bom barco pode ser pequeno. Existem muito mais barcos com menos de 30 pés navegando mundo afora do que se imagina em terra. É comum encontrar barcos na faixa dos 27, 28 pés viajando, e a maioria das “aves migratórias” deve estar na faixa entre 30 e 40 pés.
Importante é um barco forte, que navegue bem, que seja seco, bem preparado e com boa autonomia de viagem. Tanques com boa capacidade de armazenamento de água, uma mastreação robusta, um sistema de leme simples e confiável. São itens mais comumente encontrados em barcos de outros tempos, quando as necessidades impostas pela navegação marítima ditavam as regras mais do que as demandas de mercado.
Enfim, o assunto é vasto e pede que seja explorado com mais profundidade. Porém, o que parece importante ser dito neste artigo é que a tendência à criação de mitos e heróis não contribui muito para o desenvolvimento de uma verdadeira cultura náutica. É preciso desmistificar a vela. E para isso é imprescindível a difusão de conhecimentos e informações. E o desenvolvimento de uma cultura que esteja mais ao alcance das pessoas, digamos, normais. Somente assim poderemos ter no Brasil, um país com uma costa naturalmente privilegiada, uma modalidade de esporte e laser que faça parte de nossa cultura e deixe de ser o privilégio de poucos.
Inclusive porque, se analisarmos bem, veremos que temos na história de nosso país um povo com alma náutica e vocação marítima. Basta pensar na quantidade de embarcações tradicionais, na agilidade, graça e simplicidade das pequenas embarcações indígenas, nas jangadas... na beleza e eficiência dos saveiros...
Provavelmente, a grande beleza de navegar, não está na incrível coragem e nas qualidades excepcionais de determinadas personalidades. Mas sim, na capacidade que o mar tem de colocar-nos a todos no mesmo patamar, indiferentemente de classe social ou outros atributos artificiais; na capacidade de mostrar-nos em determinados momentos o quanto somos humanos e frágeis, quanto medo podemos sentir, quanto respeito nos impõe, como um grande ser vivo a quem gostamos de frequentar, mesmo que o tenhamos que fazer de cabeça baixa e com grande deferência. E todo esse poder que o mar nos demonstra com suas grandes vagas e respiro profundo, mesmo em dias calmos, tem a grande virtude da formação de caráter que vai, pouco a pouco, moldando nossa personalidade."

 

Wladimir também produziu um excelente filme documentário sobre a Travessia Sardenha - Paraty chamado Gosto de Sal, veja o trailler no YouTube em http://youtu.be/2SwZncU8BLc.

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