Gostei bastante deste artigo escrito pelo velejador Wlademir Juliano Treiss, publicado na edição nº 6, página 6, de maio/junho 2013, do Jornal Almanáutica, que transcrevo na íntegra.
"Quem já pensou em navegar por aí, singrando os mares mundo afora? Um
veleiro de cruzeiro com o qual possamos ir longe, com um certo conforto,
conhecendo lugares paradisíacos que, normalmente, vemos somente em revistas e
na televisão... Pode parecer um sonho difícil de ser alcançado, distante da
realidade da grande maioria. Mais precisamente, um veleiro de verdade... deve
ser coisa de milionário!
E a coragem que é preciso então? Pra enfrentar ondas gigantes, ventos
furiosos... semanas de isolamento... Deve ser o tipo de coisa pra pessoas
excepcionais, de coragem extrema e preparo fora do normal...
Mas, minha gente, será que é isso mesmo? Será que não existe uma certa
tendência à criação de mitos e heróis quando, na verdade, como sabem aqueles
que realmente frequentam o mar, a navegação é atividade de gente brava, mas
simples... homens de caráter, gente determinada, mas gente como a gente, homens
e mulheres que amam o mar e nada mais?
E quanto ao mito que existe de que para navegar mundo afora num veleiro
de cruzeiro é preciso ter muito dinheiro? Certamente existe gente abastada no
meio da vela, mas raramente se vê uma pessoa realmente rica (economicamente
falando) vagabundeando mundo afora. Os barcos que se encontram mundo afora são,
na maioria das vezes, de pessoas da classe média que, por amor ao mar, à
navegação à vela e às possibilidades de entrar em contato com povos e culturas
distantes acabam jogando tudo pro alto (geralmente com anos de preparação e
economias) e partindo em busca do próprio sonho. Provavelmente seja a forma
mais econômica de se viajar longas distâncias e por longos períodos.
E o barco que se precisa pra realizar tal proeza!?! Deve custar
verdadeira fortuna... E os equipamentos necessários então!?! Radares de última
geração, chart-ploters interfaceados com computadores, fac-símile, tablets,
geladeiras, dessalinizadores e toda uma parafernália caríssima...
Será mesmo? E como fizeram Vito Dumas, Slocum, Moitessier e tantos
outros de épocas em que nada disso existia? Eram todos loucos que atravessaram
oceanos e que chegavam nos destinos pré-estabelecidos por pura sorte? Ou será
mais uma questão de vontade, determinação e preparação?
Barcos de última geração, com todos os detalhes de requinte e
sofisticação são sempre caros, e, muitas vezes, projetados mais para terem boa
manobrabilidade dentro da marina do que estabilidade de rota em alto mar.
Barcos que têm bom desempenho a motor, mas que são verdadeiros suplícios
navegando no contra-vento. Ao invés disso, um bom barco de alto mar pode estar
nos fundos de uma marina, num terreno baldio, semi-abandonado dentro de um
velho galpão... Quem sabe um pequeno barco de madeira, um antigão de fibra de
vidro com aquele casco de espessura generosa... Certamente não deverá custar
uma fortuna! E, incrível, pode ser que seja um ótimo barco para longas
travessias! Fora de moda hoje em dia, mas, ¿porque não? um barco de quilha longa
para uma boa estabilidade de rota, ou com um robusto skeg conferindo segurança
e robustez ao leme, quem sabe armado a cuter, o que lhe dará um mastro mais bem
estaiado além de uma grande gama de combinações com as velas para melhor
enfrentar as diversas situações...
Ademais, falando em parafernália, sistemas complexos são, na maioria das
vezes, sensíveis e delicados, consomem a energia armazenada nas baterias...
consequentemente será preciso mais combustível, ou mesmo um gerador a bordo,
mais placas solares... Tudo contribui para complicar e encarecer.
Bem, certamente estas afirmações são a opinião do autor que vos escreve.
Estou certo de que o assunto pode gerar muitas discussões e controvérsias, mas,
na minha humilde opinião, a simplicidade a bordo tem grandíssimas vantagens que
só vem a contribuir para a economia do próprio bolso e para a redução dos
problemas a bordo. Além do mais, ao simplificar as coisas e reduzir os custos,
as chances de ir para o mar mais cedo aumentam muito...
É um mito pensar que geladeira a bordo é imprescindível. É falta de
conhecimento achar que o piloto automático é o melhor aliado numa longa
travessia. Um leme de vento, além conferir mais autonomia e de ser mais seguro
como equipamento para manter a rota, também pode ser construído de forma muito
simples e robusta, principalmente se o leme do barco for do tipo fixado no
espelho de popa... (novamente a simplicidade...)
O que se precisa realmente é de um bom barco e um bom preparo.
E um bom barco pode ser pequeno. Existem muito mais barcos com menos de
30 pés navegando mundo afora do que se imagina em terra. É comum encontrar
barcos na faixa dos 27, 28 pés viajando, e a maioria das “aves migratórias”
deve estar na faixa entre 30 e 40 pés.
Importante é um barco forte, que navegue bem, que seja seco, bem
preparado e com boa autonomia de viagem. Tanques com boa capacidade de
armazenamento de água, uma mastreação robusta, um sistema de leme simples e
confiável. São itens mais comumente encontrados em barcos de outros tempos,
quando as necessidades impostas pela navegação marítima ditavam as regras mais
do que as demandas de mercado.
Enfim, o assunto é vasto e pede que seja explorado com mais
profundidade. Porém, o que parece importante ser dito neste artigo é que a
tendência à criação de mitos e heróis não contribui muito para o
desenvolvimento de uma verdadeira cultura náutica. É preciso desmistificar a
vela. E para isso é imprescindível a difusão de conhecimentos e informações. E
o desenvolvimento de uma cultura que esteja mais ao alcance das pessoas,
digamos, normais. Somente assim poderemos ter no Brasil, um país com uma costa
naturalmente privilegiada, uma modalidade de esporte e laser que faça parte de
nossa cultura e deixe de ser o privilégio de poucos.
Inclusive porque, se analisarmos bem, veremos que temos na história de
nosso país um povo com alma náutica e vocação marítima. Basta pensar na
quantidade de embarcações tradicionais, na agilidade, graça e simplicidade das
pequenas embarcações indígenas, nas jangadas... na beleza e eficiência dos
saveiros...
Provavelmente, a grande beleza de navegar, não está na incrível coragem
e nas qualidades excepcionais de determinadas personalidades. Mas sim, na
capacidade que o mar tem de colocar-nos a todos no mesmo patamar,
indiferentemente de classe social ou outros atributos artificiais; na
capacidade de mostrar-nos em determinados momentos o quanto somos humanos e
frágeis, quanto medo podemos sentir, quanto respeito nos impõe, como um grande
ser vivo a quem gostamos de frequentar, mesmo que o tenhamos que fazer de
cabeça baixa e com grande deferência. E todo esse poder que o mar nos demonstra
com suas grandes vagas e respiro profundo, mesmo em dias calmos, tem a grande
virtude da formação de caráter que vai, pouco a pouco, moldando nossa
personalidade."
Wladimir também produziu um excelente filme documentário sobre a Travessia Sardenha - Paraty chamado Gosto de Sal, veja o trailler no YouTube em http://youtu.be/2SwZncU8BLc.